Assistimos desde há mais de cem anos a um processo erosivo da escrita
alfabética pondo em causa, num futuro já bastante próximo, esta trave
mestra da civilização contemporânea. É essencialmente escrita a
civilização humana e desde a antiguidade, pelo menos desde o tempo das
grandes civilizações clássicas, já eram escritos os princípios
essenciais de todas as civilizações assim como já todas tinham aprendido
a fixar pensamentos em matéria durável, mesmo que algumas ainda não
tivessem saído da embrionária oratura, desleixando a gramática da
literatura.
Falava-se de Virgílio em casa de Pilatos como hoje falamos
de Fernando Pessoa em nossas casas.
Os hábitos da escrita soltaram os hábitos da reflexão. O gesto
escritural estimulava o exercício do pensamento. O aforismo clássico,
segundo o qual "verba volant, scripta manent", promovia a
fixação do discurso transitório e contribuía para educar o corpo ao
furtar a mente às tentações do fácil, do improvisado e do inútil. Depois
de uma geração que se extinguia outra surgia que era preparada para ir
mais além, através da utensilagem, dos suportes e das técnicas que se
alteravam, mas, uma vez estabelecida a gramática simbólica de uma
língua, o passado remoto convivia com o presente no pragmatismo da unidade
dos textos escritos nessa mesma língua.
Assistimos hoje à diminuição do hábito de escrever e de selecção de
imagens, o que provoca a decadência do pensar. Um indivíduo habituado a
escrever cartas ou textos ou até livros está habituado a pensar. O que
não é o caso de um palrador de telemóveis que não gasta um segundo a
reflectir. Quem se der ao trabalho de assistir a uma qualquer entrevista
de rua na TV facilmente percebe que a maioria dos entrevistados jamais
se preocupou em exercitar o pensamento; quem convive com a juventude
escolar espanta-se com o tempo infinito que o nosso ensino perde com a
realimentação de estereótipos, de lugares-comuns e frases-feitas. Os
corriqueiros pronto, pronto, pronto, assim como outros parecidos,
escondem a mesma incapacidade de reflexão e de autonomia do pensar.
O
movimento da escrita, do gesto seguro e firme, não é o movimento de
carregar em teclas e botões.
O primeiro parte do pensamento para a expressão, enquanto o segundo é
apenas pressão automática e impressão sensorial de significantes. Falta a
este último a chave do sentido, não mora na casa do ser: habita nas
redondezas.
É fácil apontar as TVs como responsáveis do idiotismo em que se caiu.
Quando a sociedade se recusa olhar ao espelho, ou quando, vendo-se ao
espelho e se acha linda, que hão-de fazer as TVs senão venderem espelhos
mágicos?
A relação mestre-escravo tem aqui plena aplicação: A SOCIEDADE
É ESCRAVA SEMPRE QUE DESISTE DE PENSAR.
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