Ao frondejar do altaneiro roble da liberdade são os chefes nomeados por «pastores do povo», antonomásia rudemente explícita que o povo era guiado como alarvia e conduzido como rebanho de carneiros.
Seus apóstolos e guias, a alguns dos quais Garret mimoseou com o humilhante chamadoiro de «calças de coiro», enfarados do cheiro da plebe afastaram-se do povo para entrarem de ocupar os lugares dos privilegiados banidos, usurpando-lhes as posições, macaqueando a presença, ademanes e costumes aristocráticos, e aparentando o viver de elegância moral, distinção natural e atributos daqueles que nasciam à parte.
Bem confirmavam o dito de António Sardinha que a mão leva cem anos a aristocratizar; e uma vez aristocratizada já não são precisos pergaminhos, mesmo repançados ou de nova indústria química, valorizam e afidalgam os de papel do Prado.
Em contra-prova alguns homens deixaram públicas demonstrações de inteireza e coerência democráticas. Alexandre Herculano tomou como padrinhos do seu casamento o sacristão da igreja e um mendigo que o acaso lá levou, e, nos tempos mais recentes, o Dr. Teófilo Braga, se bem que haja, cá e lá fora, quem o coloque a grande distância de Herculano, sobraçando repolhudo guarda-sol, de fraque de gato pingado e sentado no carro do Chora, entre hortaliceiras e varinas, assim se encaminhava para o palácio da presidência do governo provisório da República.
Com tudo isso os princípios adregavam-se de inalteráveis e impereciveis pois Thiers sentenciara: « O rei reina, mas não governa», desconhecendo o dito atribuído a D. João VI: «Chamo-me João; faço o que dizem; como o que me dão.»
A ética do sistema estava no expoente da doutrina, nas alturas em que os eleitos se metamorfoseavam de simples cidadãos escolhidos pelas autarquias locais em representantes omnicientes da nação. Estava nas câmaras. A dos deputados, assembleia garbosa e pesporrente, em que se faziam ouvir orações prefulgentes que o sublime engenho e sedução da palavra melhor não produziram ainda em Portugal, arrebatando-se de vez em quando a protestações empolgantes e evoladas de patriotismo acendrado; onde, em catadupas esfusiantes de elocução, se expressou, desde os contornos ao fundo, o pensamento humano, brotando as ideias reformadoras e saindo realizações que encaminharam o país pela senda do progresso e o dotaram com os benefícios da civilização, mas, donde, ao mesmo passo, se escapavam incoerências, despautérios e desordens que, doença ingénita da instituição, a desacreditaram, transformando-se as antigas cortes no pícaro Solar das Barrigas e como um valhacouto de filarmónica ébria e desafinada regida com o Pau de bater bifes.
A dos Pares, cenáculo mais composto e indomentato, em condescendência com os aparatos da nobreza já deformada, também brilhador, se não desmerece do dos mais directos representantes da nação, mordida da mesma moléstia inata não se salva de destemperos e de cenas desprestigiosas, tal a de um digno par passar bilhetes de rifa aos colegas. Sujeitou-se a críticas jocosas atingindo até um purpurado vice-presidente em exercício, dizendo-se-lhe descer da sua alta jerarquia eclesiástica para o partidarismo vesgo: Uma vez, que «lhe nasciam talentos e qualidades até incongruentes com o seu temperamento e carácter»; outra, que «fazia-se de desentendido e entendia às avessas», e outra ainda, que «aquele patriarca, se lho consentissem, era capaz de eleger o papa ele só, ou com o auxílio do marquês da Fronteira».
Ficaram, porém, as ilustres assembleias de escolas de oratória, do culto nobre e sublimada arte de falar, mercê do emblezo ante o esplendor e elegância helénica da palavra e aurifulgências do talento, agora substituídos pela declamação fria e seca, calma, pautada e martelada, como o zangarrear em monocórdio, de modo que os lentes, os que liam nas cátedras passaram a ser professores, e os oradores são hoje lentes.
Doidejavam os homens até à caricata incongruência de avocarem para si aquilo que no passado recente era tido por fátuo. Malbarataram-se não só os antenomes que da V. Mercê, com curto trânsito pela Senhoria, galgaram abruptamente para a Excelência, como também os títulos nobiliárquicos, as grão-cruzes, as comendas e as cartas de conselho com tal sobejidão que nos quatro primeiros reinados fizeram-se perto de um milheiro de titulares, e no distrito de Viana do Castelo só em um dia de 1867 foram dadas quatro comendas da Conceição.
Não é pois de magoar passados dez anos uns ingleses (conta-o Júlio Dantas) rirem de verem em Lisboa a cruz de Cristo «ao pescoço dum lacaio, dum mulato, dum mestre de bilhar e de um músico».
Mais destes, radicais na adopção das novas fórmulas políticas, eram generosos, palavrosos e utópicos na defesa da superioridade da constituição de 22; os outros, mais práticos, realistas e insofridos desfraldaram o estandarte com o ditado elaborado por um brasileiro, como dádiva de um príncipe depois de rebelado contra a Nação, contra o pai e rei, e de condescender na independência do Brasil. Afinal foram os da carta constitucional quem radicou o novo regime estratificando-o no solo português com afã e com uma fé inabalável, revelados num anónimo credo político, que se fala ter sido recitado em muita loja da aventalada a partir do exílio de D. Miguel I. Rezava assim:
Creio em D. Pedro IV todo poderoso, rei de Portugal e imperador do Brasil, criador de um santo e justo governo, como é a carta constitucional da monarquia portuguesa. Creio em D. Maria II, sua filha legítima, Nossa Senhora e rainha de Portugal: a qual foi concebida por obra de seus pais e graça de Deus. Nasceu da imperatriz do Brasil, filha legítima do imperador da Áustria, nosso valoroso aliado. Padeceu o incómodo das ondas do mar para nosso socorro, por influxos de uma facção e tirana junta apostólica, por via das quais foi a carta constitucional crucificada, morta e sepultada nas águas dos rios correntes.
Desceu aos melhores corações dos verdadeiros e leais portugueses, e passando trabalhos políticos, ressurgirá da mortalidade em que se acha, e subirá ao majestoso Trono de uma Virginal Rainha, e se assentará ao seu lado direito, como monarca guiado pela sabedoria, justo e valoroso e com o seu poder, a qual virá julgar, com grande glória, os ingratos, apostólicos e rebeldes, que serão asperamente punidos.
Creio em D. Maria II, no ministério que ela sabiamente há de eleger, no bom governo e na administração da justiça que se há de observar, na comunicação de tantas felicidades em todo o reino oprimido, na ressurreição da carta constitucional pelas venturas que deles se esperam e na inteira observância e manutenção dela, por uma vida eterna. Amén.
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