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As vozes do passado - fonógrafos e incertezas

«Pouco se tem sublinhado que, enquanto nos ficou do passado uma enorme quantidade de documentos escritos e visuais, nada nos ficou das vozes antes dos primeiros fonógrafos roufenhos do século XIX. Mesmo no que se refere à representação da palavra, nada ou quase nada foi feito antes de alguns grandes romancistas e dramaturgos do século XIX. Quero dizer que foram eles os primeiros a registar na sua espontaneidade, na sua lógica descontínua, nos seus complicados rodeios, nas suas lacunas e subentendidos, a conversação, sem a fazer passar pela estilização trágica ou cómica ou pela explosão lírica.

     Nem a Antiguidade nem qualquer um de dos séculos intermédios nos ofereceram o equivalente de uma conversa entre Pierre Bezhúkov e o príncipe Andrei, em Tolstói, entre o Rosmer de Ibsen e Rebecca West e o seu manhoso cunhado, ou ainda, nas duas pontas da cadeia, das reflexões de Vautrin explicando a Lucien o que pensava sobre a vida, ou da breve troca de palavras entre Marcel e o médico que acabou de auscultar a sua avó. A transcrição de palavras em termos puramente realistas, sem interferências de qualquer espécie, é curiosamente contemporânea dos dois meios mecânicos de reprodução do objecto, o fonógrafo e a fotografia.

     Mutatis mutandis, as mesmas observações podem aplicar-se à palavra não pronunciada, que se forma em nós sob o choque imediato do acontecimento, as impressões de Rastignac olhando Paris do alto do Père-Lachaise, os últimos pensamentos que atravessavam o espírito de Anna karénina, as sensações do príncipe Andrei ferido em Austerlitz. Daí que a representação dessas diferentes formas não estilizadas da palavra constituam em toda a tentativa de recriação romanesca do passado uma gigantesca pedra angular. Podemos mesmo perguntar-nos se a utilização dos recursos do romance para fins semelhantes que se fez na Europa ao longo do século XIX e em princípios do século XX não será um contra-senso e se, sobretudo, o facto de os Antigos nada nos terem legado de semelhante não prova que essa é uma forma mal adaptada de evocar a sensibilidade antiga.»

 

In "O Tempo, Esse Grande Escultor" de Marguerite Yourcenar - Lisboa, Relógio d´Água, 2020, pp. 29 e 30.

Excelente livro este que não se trata apenas de um romance, é muito mais do que isso, é um compêndio de história, sociologia e política. Recomendo a leitura para quem puder.

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