Houve um momento, ou até vários, em que a percepção da «cultura» começou a ser formulada pelo pensamento. A «cultura» sempre existiu, mas originalmente não era pensada e questionada como tal. Não havia necessidade de a explicitar ou justificar.
A palavra «cultura» propriamente dita, desde sempre esteve sujeita aos diversos contextos dos diversificados significados que a palavra foi adquirindo. No início do século XVIII, o termo «Culture» é já antigo no vocabulário francês, originando-se do latim Cultura, que se referia aos cuidados agrícolas, como os campos e o gado. No final deste mesmo século o termo remete para uma parcela de terra cultivada. Já no século XVI o termo tinha tomado um sentido figurado, mas apenas no século XVIII se impõe definitivamente. Nos dicionários surge quase sempre acompanhado de um 2º termo que o determina: «cultura das artes», «cultura das letras», «cultura científica», etc. Aos poucos a palavra desembaraça-se dos termos que a determinam, sendo usada isoladamente, querendo significar a "educação do espírito". De seguida passa-se de "cultura" como acção (de instruir) a "cultura" como estado (de espírito cultivado pela instrução), ou seja, estado do indivíduo que tem cultura.
Esta definição é adoptada em definitivo a partir de 1789 pelo Dicionário da Academia Francesa, que estigmatiza "um espírito natural e sem cultura", o que provoca uma oposição conceptual entre "natureza" e "cultura". Esta oposição vai servir de "âncora" entre os pensadores das luzes que passam a conceber a cultura como carácter distintivo entre os homens. Entende-se assim que a cultura é a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, visto como um todo, no curso da história. Por outro lado, o termo é associado às ideias de progresso, evolução, educação e razão, núcleos vivos do pensamento da época das luzes.
O movimento das luzes nasce em Inglaterra mas é em França que descobre a sua linguagem e o seu vocabulário.
Cultura e civilização começaram a caminhar a par; a cultura evoca os progressos individuais e a civilização os progressos colectivos. Civilização, palavra surgida no século XVIII, significava aperfeiçoamento dos costumes, de ora em diante passou a significar o processo que permite à sociedade sair da ignorância e da irracionalidade, um processo de melhoramento das instituições, da legislação e da educação [não interessa agora discutir se realmente foi assim]. Mais tarde a palavra tomaria um sentido político, o governo da socie-dade antecâmara do parlamentarismo.
É evidente que os termos cultura e civilização, no século XVIII, reflectem uma nova concepção do mundo e dos seus habitantes em que a dessacralização da história provoca um corte entre a filosofia da história e a teologia. De certo modo, no pensamento das luzes, este corte passou a ser encarado (de forma errada) como um sucedâneo da esperança religiosa. Nascia assim o antropocentrismo, onde o homem passa a ser o centro do universo.
A antítese cultura-civilização nos séculos XIX e XX
A adopção do termo «cultura» no seu sentido figurado pelos alemães, também no século XVIII e no seguimento da Revolução de 1789, teve um grande sucesso entre a burguesia intelectual alemã e pelo uso que lhe deram contra a aristocracia da corte. Ao contrário da França, a aristocracia e a burguesia não tinham boas relações na Alemanha. A própria burguesia estava muito afastada do poder, o que provocou descontentamento, começando a utilizar a cultura para se promoverem e imporem. Cultura e civilização estão em confronto na Alemanha. Segundo o pensamento burguês alemão, a nobreza da corte pode ser civilizada mas não é culta. Tal como o povo comum. A missão da burguesia alemã é, então, defender e irradiar a cultura germânica.
A antíteses cultura-civilização manifesta-se em pleno quando, num primeiro momento, se admite que existem laços estreitos que unem os costumes civilizados da corte alemã à vida da corte francesa, e depois, o facto foi colocado em causa e classificado de alienação. A reabilitação da língua alemã - onde à época se falava francês - é cada vez mais uma necessidade, assim como estabelecer, no domínio espiritual, o que é especificamente alemão.
O que aconteceu foi que depois da Revolução francesa o termo civilização perdeu a sua conotação aristocrática alemã, começando a evocar a França. A cultura propriamente dita, foi transformada no século XIX em marca de distinção da nação alemã, mediante a classe média que se sentia insegura e afastada do poder, tentando deste modo criar uma legitimidade própria e uma base social alternativa.
O grande facto é que os alemães, de um modo geral, participavam da mesma insegurança e incerteza - a falta de consciência nacional - que se interroga sobre o carácter específico do povo alemão, que ainda não tinha estabelecido uma unidade política nem uma identidade nacional definida (como sabemos, antes da fundação oficial da nação Alemanha em 1871, o território era um aglomerado de estados e/ou principados independentes). Tendo em conta a força dos estados vizinhos (França e Inglaterra), a nação alemã procura assim afirmar a sua existência, glorificando a sua cultura.
A noção de «Kultur» especificamente alemã vai tender cada vez mais, a partir do século XIX, para a delimitação e consolidação das diferenças nacionais. É uma noção particularista que se opõe à nação francesa, universalista de civilização, sendo esta última, pelo seu lado, a expressão de uma nação cuja unidade nacional se mostra há muito adquirida, ao contrário da alemã. Depois da derrota de Iena (1806) e da ocupação dos exércitos napoleónicos, a consciência alemã dará ainda mais vigor ao nacionalismo, exprimindo-se este através da interpretação particularista da cultura alemã. O nacionalismo alemão fará com que a cultura da Alemanha se ligue, em medida sempre crescente, ao conceito de nação. Os autores românticos alemães opuseram a cultura, expressão profunda da alma de um povo, à civilização que unicamente estabelece o progresso material ligado ao desenvolvimento económico e técnico. Situação esta que condizia perfeitamente com a concepção étnico-racial da nação alemã.
Em França o conceito de cultura teve desenvolvimentos diferentes no século XIX. A acepção da palavra é mais ampla. Passa não apenas a referir-se ao desenvolvimento intelectual dos indivíduos, mas também passa a designar um conjunto de caracteres próprios de uma comunidade. Do lado francês, cultura e civilização são quase sinónimos, sendo o termo cultura continuamente ligado a uma ideia unitária de género humano; a cultura da humanidade. Os intelectuais franceses recusam uma cultura nacional, tal como recusam a oposição alemã entre cultura e civilização.
No século XX a rivalidade entre as duas culturas (francesa e alemã) será mais uma das achas na fogueira a conduzir à primeira Guerra- Mundial, alimentando ainda mais o debate sobre as oposições culturais das duas nações. A partir dessa época o termo cultura entrou em declínio em favor da civilização, porque a ideologia nacionalista francesa considera-se diferente da alemã; uma universalista, a francesa, e outra particularista, a alemã.
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