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A homogeneidade dos espaços europeus e a uniformização dos preços

Durante muito tempo, ainda antes das revoluções francesa, americana e industrial, existiam três Europas; a do sul, a mais cara porque a mais desenvolvida, a de leste e a do norte, mais baratas e ainda por saturar. Estas diferenças têm sem dúvida a sua incidência demográfica, a sua incidência sobre o crescimento, incentivando uma rotação mais rápida dos produtos, dos capitais e dos transferts especulação-investimento.

Esta questão afere-se facilmente, basta olhar para a geografia e o seu melhor de todos os indicadores, o trigo. Entre Valência, pólo peninsular do Mediterrâneo caro, e Lwow centro medieval da Polónia barata, a relação preço-prata do trigo, no decénio 1440-1449, mostra-nos uma proporção incrível de 1 para 7 (isto é, 6gr. a 43gr. de prata por hectolitro). No final do século XVI, quando o sul está em 400, o norte está em 76 e a Polónia em 25! Estes números podem, também, ajudar a explicar as subsequentes decadências dos impérios ibéricos e os subsequentes crescimentos das economias germânica e do próprio Sacro Império.

  A primeira mudança importante ocorre no decénio 1650-1659, coincidente com a emergência das Luzes. A Europa cara, Europa economicamente dominante, onde se pode incluir a Inglaterra e os Países Baixos (Holanda) e também a metade Norte de França centrada em Paris. O Mediterrâneo recuou para a segunda posição, enquanto que a Europa de leste continua a ser a mais barata, Lwow 44,31gr, Lublin 40,13 e Varsóvia 25,24 gr/hl. No dizer de Chaunu (1995, p. 31), os novos ricos da Europa comem pão caro. No decénio 1740-1749, confirma-se em pleno a nova geografia de preços. Uma Europa cara composta pelos países mais ricos, que se estende entre as costas do Atlântico, da Mancha e do Mar do Norte, a Europa de pão barato que é a Europa continental a leste e uma Europa média, o sector "retrógado" e em decadência do Mediterrâneo. A bipolarização será completa ao longo do restante século XVIII e do século XIX, o sector Atlântico caro e o sector barato que vai do Mediterrâneo, passando pelo Centro e Leste da Europa.

A relação de preços entre a Europa cara e a Europa barata acentuou-se ainda mais. Evidentemente que o trigo não pode servir de indicador único, e o arranque da Inglaterra a partir de 1780 cavou novas disparidades. A homogeneização de um espaço económico, quase sempre desarticulado nos séculos XVI e XVII, está assim ligado à época das Luzes, quer ao nível dos seres quer ao nível das coisas.

A posterior atenção às questões económicas fez-se através de uma nova estrutura social, mas o arranque inglês do século XVIII é indissociável de uma plasticidade social anterior às Luzes, inspirando-se as próprias Luzes neste facto reforçando as suas justificações e objectivos. Em parte, claro, porque nem todas as opções e justificações iluministas se revelaram acertadas, bem pelo contrário. Mas essa questão não interessa aqui para o caso.

E o que fizeram os mentores das Luzes a partir da década de 80 do século XVIII? Quase nada, ou muito pouco. A resposta pode parecer injusta mas é grosseiramente verdadeira e assertiva. Tudo depende, como sempre, dos lugares e dos momentos. No Leste, o movimento iluminista colonizou o Estado, tornando-o mais eficaz, onde imperava ainda uma estrutura demasiadamente feudal (porque fora de época), senhorial, patriarcal e fechada, onde existiam relações de domínio muito fortes. No Ocidente deu-se uma recuperação económica, que passou a ser dominante em função do poder do Estado, o que implicou grandes transformações nos meios produtivos, mas sem modificações de monta nas relações de produção. 

O caso da Rússia é o caso limite, quanto à Áustria é menos apoiado e a Prússia, potência em emergência em meados do século XVIII, está numa situação intermédia. As estruturas nobiliárquicas da sociedade aparecem como condição de eficácia no primeiro estágio da Revolução Tecnológica, que os déspotas esclarecidos ambicionam. Não há opções disponíveis, o despotismo esclarecido, a curto prazo, consolida as estruturas sociais herdadas, difundindo meios de conhecimento e, acima de tudo, um nível elementar e muito parcial de alfabetização. Houve um incremento da produção e o nível das comunicações prepara a modificação, a longo prazo, das relações sociais.

No Ocidente a situação é totalmente diferente. Inglaterra e França estão na vanguarda. A Plasticidade da sociedade inglesa é única na Europa, pois a revolução social é anterior ao século XVIII, originou-se no século XVI e atravessou boa parte do século XVII. Basta ver que o feudalismo estourou no século XVI, os pagamentos em moeda foram rareando e a própria reserva inglesa parte à conquista dos antigos domínios feudais. A gentry britânica colocou de lado a renda e partiu em busca do lucro, sendo exemplo disso mesmo o papel que a mesma desempenhou no modelo de transformação agrícola do Norfolk. A revolução política fez-se em 1688-89. Loecke justificou mais tarde, ou assim pretendeu, o new deal de 1689. A elite passou a confundir-se, em quase tudo, com as classes dirigentes, ao mesmo tempo que o sistema apresentava uma maleabilidade suficiente para resolver, com sucessivos ajustamentos, as contradições que iam surgindo. O avanço definitivo de Inglaterra teve muito a ver com isto. Os iluministas ingleses, honra lhes seja feita, tinham mais do que fazer do que preocuparem-se com utopias. Estavam definitivamente ultrapassados os jogos estéreis de Thomas More, os sistemas proto-comunistas dos espiritualistas e puritanos de 1650, assim como o inevitável folclore social associado. 

Relativamente à França, as coisas não se passaram assim. A elite não se confunde com as classes dirigentes. A sociedade francesa não previu nem mediu convenientemente as reformas da nobreza dos anos 1670-1680, ao nível das regências e do golpe falhado de Maupeou (1774). O refúgio da nobreza mediante a renda, a conservação de uma pequena exploração rural foram condições que conduziram a uma cisão artificial da elite. Quando a nobreza decidiu assaltar o Estado, tal opção só lhe trouxe prejuízos económicos. Criou-se assim uma polarização contra um privilégio injustificável dos vilãos ricos esclarecidos. Logo após o restabelecimento dos parlamentos, tal como do controlo da casta sobre o poder legislativo e regulamentador do Estado, qualquer adaptação tornou-se impossível. O que se veria em pleno conforme o tempo ia passando, a toda e qualquer contradição a situação tornava-se explosiva e difícil de resolver.

França e Inglaterra que tinham seguido caminhos muito parecidos até 1530, divergiram no horizonte e, a partir de 1680, a divergência nunca mais se reduziu. As catastróficas reformas francesas reforçaram a rigidez social, o pensamento iluminista não conseguiu fazer face às complexidades sociais francesas. Teve a capacidade de armar a Revolução Francesa, mas não de a evitar. O que se seguiu é por demais conhecido, despotismo esclarecido, excesso de conservadorismo e de reacção. Posições irrealistas e tentativas de mudanças utópicas, o que se traduziu numa grande dificuldade em acertar os ritmos da história intelectual e social da França.

 

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