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Memórias de Mathieu-Louis Molé sobre a Revolução Francesa (1789-1794)

 «Ainda não vivi o suficiente para que as minhas memórias sejam lidas. Ainda só falei de mim. (...) Admito que para mim é uma verdadeira vingança - para desmascarar - através destas memórias tantas vítimas, ou tantos felizardos que o mundo - ou o azar - fez.

(...) A minha família é suficientemente conhecida para que eu esteja dispensado dela falar. A reputação de justiça, de desinteresse do meu avô, dentro de um corpo de magistrados onde virtudes semelhantes eram tão comuns, será suficiente.

Houveram muitas crianças que morreram muito novas, excepto uma rapariga, que mais tarde viria a ser a duquesa de Cossé, e o meu pai, cujo nascimento veio, como dizem as escrituras, «honrar a sua velhice».

Rendíamos-lhe um culto muito dedicado e especial; morreu com 90 anos  em 1793, logo após dormir o sono dos justos, não tendo conhecido nem as doenças da alma nem as do corpo. Tinha sido apresentado a Luís XIV durante a infância. Ele lembrava-se, e retratava-o de modo absolutamente dedicado, o Grande Luís como era conhecido, sempre pronto e disponível para ajudar o próximo e que nunca se esquecia dos méritos individuais de cada um. O meu pai conheceu a regência, pronunciada, sob Luís XV, a expulsão e readmissão dos Jesuítas, viu morrer Luís XVI, assistiu ao ministério de Robespierre e os seus olhos fecharam-se no momento exacto em que a sua venerável cabeça iria, sem dúvida, atrair a mão do carrasco.

Em 1793 tinha eu 12 anos e toda a minha instrução se limitava a saber ler e escrever. Os meus pais incessantemente ocupados a tentar salvar a fortuna dos seus filhos, prestavam pouco apoio àqueles a quem tinha confiado a minha educação. (...) Pouco tenho a dizer sobre os inícios da Revolução, mas devo falar dos infortúnios que se repercutiram na minha infância e dos efeitos que produziram no meu espírito. (...) Meu pai, de modo altivo e sem uma certa vaidade, daria a sua vida e a dos filhos para poder servir o rei. A força do seu sentimento não lhe permitia formar opiniões. Muito dedicado para ser prudente, fazendo alarde do seu monarquismo e fidelidade aos ideias monárquicos. Ofereceu-se, desde o início da Revolução, às persecuções dos revolucionários, que aliás, conheciam muito bem a sua probidade, a sua franqueza, a sua bondade e o seu amor à monarquia e ao rei. Nunca o encontraram envolvido em alguma intriga; não deixaram assim de o admirar mesmo depois de ser imolado. A 14 de julho a nossa casa foi particularmente ameaçada, o jardim do hotel Molé tinha uma porta que dava para a rua da universidade. Estava eu precisamente nessa porta quando um grupo de revolucionários armados paravam à minha frente, dizendo que era preciso matar o meu pai. Voltei para trás rapidamente, alertando desordenadamente a minha mãe que era preciso alertar o pai. Mal entrei em casa a minha mãe despachou-me juntamente com meu pai para casa de uma amiga, quase vizinha, fuga que me encheu de medo e terror com alguma dose de indignação pelo meio.

O meu pai não aceitou muito bem sair de casa e pretendia regressar logo que caísse a noite, mas, considerando a sua idade já avançada, quase 65 anos, resolveu-se a ficar escondido em casa da amiga. Mal nos tínhamos deitado fomos logo acordados por tiros de espingarda que ressoaram do jardim; visto-me apressadamente e dirijo-me a toda a velocidade para casa do meu avô, encontrando aí a minha mãe e irmãos».

Continua.


Transcrição feita da revista "Revue des Deux Mondes" de 1 de abril de 1941, pp. 259 e seguintes.  

Comentários

  1. « Houveram muitas crianças que morreram… » — um passo da transcrição a rever. «Abril» com minúscula na data da «Revue des Deus Mondes» outro tanto.
    Cumpts.

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  2. Sim, o «houveram muitas crianças que morreram» não está bem certo, terei mais cuidado nas próximas transcrições. Obrigado pela chamada de atenção. Quanto ao abril com minúscula, também foi um lapso. Mais uma vez obrigado.

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