Avançar para o conteúdo principal

Memórias de Mathieu-Louis Molé sobre a Revolução Francesa (1789-1794) - II

 «A Revolução continuava na sua insanidade. Na noite de 30 de maio de 1793, Duval que salvara o meu pai dos massacres da Abadia de Paris, foi ter com os jacobinos para averiguar dos seus estados de espírito. Ao regressar informava-nos que a raiva dos demagogos estava virada para ele, o que nos devia preocupar enormemente, havendo a possibilidade de nessa mesma noite virem buscar o meu pai para o sacrifício final. Pouco após, os irmãos Richard, um capitão o outro sargento da Guarda Nacional, vieram aconselhar-nos a fugir, para a periferia de Paris. Seguimos o conselho e saímos todos pela calada da noite em direcção à aldeia de Colombes, onde a minha mãe tinha uma amiga fiel.

(...) Esta fuga repentina marcou-me profundamente, havendo muito poucas épocas da minha vida que estivessem tão presentes no meu espírito. Os dias passaram, calmamente e tranquilos, mas tudo se alteraria a partir de outubro de 1793. Estava escrito nos anais da história que o solo da França seria regado com o sangue dos seus súbditos. Os meus pais foram detidos e conduzidos aos jacobinos da rua de Saint-Dominique, onde o comité revolucionário da Fontaine de Grenelle tinha uma prisão cheia de pessoas. Permitiram-me vê-los, deslocando-me à prisão todas as manhãs. Passava o resto dos dias a tentar convencer os membros do comité a terem clemência dos meus pais...

(...) Raisson presidia ao comité, homem frio, de olhar distante e extremamente mau. Acabara de designar a minha família como uma das primeiras a serem proscritas, dando como justificativa "a consideração à causa monárquica". Consegui, depois de muitas insistências, que a minha mãe fosse solta e regressasse a casa, por via do seu cada vez mais fraco estado de saúde.

Passaram dois meses e a cada dia, novos julgamentos do Tribunal revolucionário anunciavam a catástrofe que se aproximava. Houve uma altura em que propuseram ao meu pai a fuga de França para evitar subir ao cadafalso, mas horrorizado, recusou, dizendo que não deixaria assim a sua mulher doente e os seus filhos ao dispor dos carrascos. (...)

Em meados de janeiro de 1794 estive pela última vez com o meu pai. Eram onze da noite,  tinham-lhe dado autorização para vir a casa ver a minha mãe, paralítica, cada vez mais debilitada e frágil. A determinado momento a porta abriu-se e entravam dois membros do comité revolucionário da secção de Bondy. Um deles era um tal de Hoerot, um corcunda com fisionomia feroz, famoso pelos seus discursos atrozes e por ser um badalhoco cínico. Cidadão - disse virado para o meu pai - tenho ordens para o levar para o Luxemburgo. O que fez ele para merecer essa sorte? - questionou-o a minha mãe - não tivemos nós um comportamento exemplar? Cidadã - interrompeu-a o corcunda - muitos outros nos disseram o mesmo, com as suas cabeças a rolarem sobre o soalho do cadafalso.

O meu pai precipita-se para os braços da minha mãe e logo de seguida o corcunda e o soldado que o acompanhava arrancam-no do leito conjugal de espada em riste, dissuadindo-me de tentar qualquer coisa. Já depois da meia-noite lá seguiu o meu pai, de mãos e pés atados, numa carroça puxada a quatro cavalos. A secção de Bondy encontrara protestos assinados pela maior parte dos membros do parlamento, onde se incluía a assinatura do meu pai, o que precipitou as medidas repressivas contra ele. No dia 19 de abril a maior parte dos membros do parlamente que estavam presos compareceram novamente perante o Tribunal revolucionário. Estava próxima a hora do suplício final. Já imaginava o seu sangue a escorrer, o meu pai, o meu respeitável e venerável pai, a nossa ilustre família destituída dos seus pergaminhos e enlameada nos horrores do suplício. Passei a noite em convulsões, o que me deu uma sensação de morte iminente.

(...) Do alto do Tribunal revolucionário, um homem chamado Coffinhal, ousara perguntar o nome a cada um dos implicados, interrogá-los, declará-los culpados e enviá-los para a morte... (...) 


Transcrição feita da revista: Revue Des Deux Mondes de 1 de Abril de 1941, pp. 264 a 270.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O marquês de Pombal, o analfabetismo, o atentado a D. José e a fraude pandémica

O atraso de Portugal, quer a nível económico, quer a nível social ou a nível cultural, começa em meados do século XVIII. Passada a fase de grande prosperidade com D. João V e a chegada ao poder de D. José I, a liberdade e a alfabetização de Portugal sofreram um grande retrocesso. Esta tendência "suicida" de destruir o bom que já vinha de trás é paradigmática do processo de involução que este país tem vindo a sofrer desde há pelo menos 300 anos. A fase de fraude pandémica é apenas o corolário lógico de um acumular de farsas e mentiras. Quando os factos são conhecidos, não há surpresa quanto ao atraso de Portugal relativamente à Europa civilizada.  O nosso atraso nada tem a ver com a religião católica como de modo totalmente leviano e com uma boa dose de ignorância se afirma nos livros de história, tese partilhada e difundida por muitos historiadores. O nosso atraso começa com um dos maiores crápulas da nossa história, precisamente, o marquês de Pombal. Afirmar que os país...

O mundo ao contrário - a doidocracia

 Eu confesso que começam a faltar-me adjectivos para qualificar o que se vai vendo um pouco por todo o lado. Então não é que a "bêbeda" da Jill Biden afirmou que não ler livros pornográficos gays que já se encontram disponíveis em bibliotecas de algumas escolas primárias dos EUA é o mesmo que viver na Alemanha Nazi...!!! A notícia pode ser lida  aqui.  Como qualificar/classificar uma coisa destas?? Outra notícia de bradar aos céus  é esta que podemos ler aqui  que afirma textualmente que os emigrantes são responsáveis por 100% dos crimes sexuais cometidos na região de Frankfurt, o que corresponde a 57,4% de todos os crimes graves cometidos na região, só porque, pasme-se não se pode falar mal da emigração ilegal!! Para onde estes políticos filhos da puta estão a levar o mundo! Isto só vai endireitar a tiro, mas de canhão. Preparemo-nos para a guerra civil intra-europeia que se aproxima a passos largos!! Agora mais  uma notícia das boas, para rir até chorar ,...

A ambiguidade do termo racismo

 Segundo a Grande Enciclopédia Universal (vol. 16, p. 11025), o termo racismo apenas se popularizou como neologismo com a obra de J. A. Gobineau, editada em 1853 e intitulada "Sur L´inégalité des races humaines", que serviria de ponto de partida e de aprofundamento do tema de outro livro, considerado o clássico dos livros ditos racistas, "Die Grundlagen des neuzehnten Jarhunderts", escrito pelo germanizado H. S. Chamberlain. Esta obra serviu mais tarde para postular as posições racistas e de raça superior do Terceiro Reich. Não obstante, e no caso português, o termo apenas se generaliza nos dicionários a partir da década de 1960. Antes dessa época são muito poucos, escassos mesmo, os dicionários que incluem o termo. O termo é definido como: «Exacerbação do sentido racial de um grupo étnico», ou seja, a celebração da raça ou o culto da raça, enquanto entidade geradora de sentimentos fortes de pertença a uma comunidade de indivíduos unidos por laços de sangue e por um...